(Foto:. Hernando na célula, o primeiro dia na prisão, após 12 dias de tortura Quito, sábado 5 de outubro, 1985)
Entrevista a Hernando Calvo Ospina realizada por Salvador López Arnal*
Não faz muitos meses aparecia a notícia que um avião da Air France, em pleno voo, era proibido de sobrevoar território estadunidense, porque levava, entre seus passageiros, o escritor Hernando Calvo Ospina. Será que se tratava de um perigoso terrorista? Sua caneta seria uma arma de destruição massiva? Há que se rir para não chorar. Antes de semelhante despropósito, Calvo Hernando já havia sido submetido a detenção ilegal, tortura e desaparecimento. Ele conta isto no seu mais recente livro, “Cala e respira”. Hernando Calvo Ospina é um jornalista e escritor colombiano que mora em Paris e é colaborador de “Le Monde Diplomatique”. Foi estudante de jornalismo no Equador, onde foi preso, torturado e encarcerado em 1985. Expulso para o Peru, onde o governo declarou-o “personna non grata”, foi acolhido pela França. Pouco se sabia dos motivos da sua captura nem os detalhes do que viveu posteriormente. Hernando acaba de publicar (Ediciones El Viejo Topo) o livro Calla y respira, um relato literário do seu sequestro, tortura e prisão em Quito. É uma obra que levou 28 anos para ser escrita e que veio à luz agora que a promotoria equatoriana aceita que existiu um grupo paramilitar, o SIC-10, que promoveu a guerra suja do governo de Febres Cordero. Os crimes que se lhe atribuem estão classificados pelas leis internacionais como de “lesa humanidade”, e não prescrevem.
Por que “Calla e respira”? Quem devia calar? Quem devia respirar?
Em muitos momentos da vida é melhor calar e respirar, ainda que estejamos a ponto de rebentar de ira que outros nos produzem. No caso do livro, era necessário calar diante das perguntas que me fazia o torturador, e tomar ar para suportar. Também já na prisão, era indispensável para conviver entre a violência e a miséria humana. Em qualquer prisão do mundo é indispensável “não saber nada” do que se vê ou escuta, e respirar como as plantas.
Que é “Calla e respira”? Um relato autobiográfico? Uma denúncia de tortura? Uma aventura trágica com final feliz? Um canto ao amor, à amizade e à resistência?
A última! Porém, sem ser um canto, mas uma homenagem. Também quis relatar experiências e reflexões que podem servir a jovens lutadores de hoje. São letras que destilam complôs. Hoje poucos sabem, ou se esqueceram, o que é “complotar”, fazer complô, essa bela ciência necessária para avançar na luta política, no caminho para a mudança social. O livro também é uma homenagem ao otimismo.
Fazes para nós um resumo do conteúdo do livro? Por que foste preso? Que idade tinhas então? Quem te prendeu? Aonde foste torturado? Para onde te levaram? Como conseguiste que te deixassem livre, no final?
O livro tem duas partes. Na primeira conto a detenção, desaparição e a tortura, nas mãos dos serviços repressivos equatorianos. A segunda é o que eu vivi durante três meses na prisão em Quito. São muito diferentes e não unicamente pela situação vivida. Fui preso porque se acreditava que eu militava na guerrilha, quando na realidade fazia parte da coordenação de um grupo de solidariedade com as lutas do povo colombiano, chamado Centro de Estudos Colombianos – CESCO. Também dirigia seu informativo “La Barraquera”. Tudo o que fazíamos era público. Porém aconteceu uma caça às bruxas contra os colombianos que tinham alguma atividade política devido a um sequestro que realizaram guerrilhas do equador e Colômbia em Guayaquil. À frente da operação de resgate estava um “especialista” do Grupo de Operações da Polícia (GEO) enviado pelo “solicialista” Henrique González, como colaboração ao ultraconservador e fascista presidente do Equador León Febres Cordero. Ninguém saiu vivo, nem mesmo o sequestrado. Depois de três meses de prisão, e quando já tínhamos pronta uma fuga, o governo aceitou deixar-nos em liberdade em outro país. É que a pressão internacional foi grande. E assim chegamos a Lima. No Peru governava Alan Garcia quem, dois meses depois, nos considerou “personas non gratas”. No terceiro mês estávamos em Paris.
Também, por certo, há uma recordação, no capítulo de “Agradecimentos”, para a CIA e para os serviços de repressão colombianos e de outros países. Não és demasiado generoso?
O que eu digo é: “E por que não, para a Central de Inteligência Americana, CIA, aos serviços de repressão colombianos e de outros países, porque suas tentativas de chantagem e ameaças me continuaram convencendo de que o caminho em que ando é o correto”. É uma realidade. Porém, ademais, eu não passo as horas nem os dias insultando-os por serem tão criminosos. Não. Prefiro conhecê-los. Reconhecer suas capacidades para fazer mal (que são muitíssimas). E não tenho tido problemas de sentar-me e conversar com alguns deles e até tomar vinho durante várias horas. Tenho aprendido bastante, nem imaginas quanto. Porém sempre fica muito claro que cada um está de um lado, em praias bem distantes, porque nós sonhamos pela vida, pela alegria, pelo bem estar de todos, começando pelo das crianças. Eles não. Eles só sabem roubar e matar, usando qualquer pretexto. Para eles, a maioria da humanidade é descartável. Ainda assim, não quero ter ódio deles, mesmo que o mereçam muito, porque o ódio cega. E necessitamos ter os olhos muito abertos para conhecê-los. Para mim, eles são perigosos enfermos mentais.
Em algumas páginas do livro, na 51, por exemplo, falas do papel desempenhado pela Mossad na instrução dos torturadores.Que podes informar sobre esse ponto? Que faz a Mossad em latitudes tão distantes do seu país de origem?
A Mossad está presente até por baixo das pedras, neste mundo. Por estes dias está se julgando o ex-ditador guatemalteco Rios Montt por crimes contra a humanidade, porém ninguém se lembra do papel jogado pela Mossad no adestramento dos torturadores. Também parece que se esqueceu que a Mossad meteu em computadores milhares de pessoas que depois foram assassinadas pelas forças repressivas daquele país. A presença da Mossad na Colômbia é muito forte e, portanto, responsável por milhares de crimes contra o movimento popular e guerrilheiro. É um trabalho bem coordenado com a CIA.
Por que tu crês que um torturador atua como tal? Por ódio? Por convicção ideológica? Por falta de humanidade? Por necessidade econômica?
O torturador é o escalão mais baixo e desprezível da cadeia repressiva de um Estado. Pode ser uma criança que não foi amada quando criança, a quem se ensina desafogar seus instintos fazendo maldades. Por um salário miserável defendem os interesses de quem não se suja com esse “trabalho”. Ensinou-se a eles, e eles acreditam com fervor, que defendem a democracia e uma fé religiosa. São extremamente covardes, pois em grupo torturam alguém indefeso, tratando de arrancar uma informação. O maior presente que podem receber é ter entre suas garras uma mulher. Aí são mais “machos”, e a cada golpe que lhe dão, a cada desprezo que fazem a dignidade dela é como um orgasmo, que provavelmente não obtém em suas casas.
Não quero te tirar nenhum mérito, tampouco ao Velho Pierre, porém Barbas é um dos grandes personagens do teu livro. De onde saiu? O que representa, na tua opinião? Tens algum contato com ele?
Barbas era um otimista irreverente, que gostava de rir. Um homem que gozava a vida apesar de estar enfurnado. Por ser o chefe do bando de colombianos, apresentaram-no a nós na primeira manhã de prisão. Desde esse momento advertiu aos demais líderes presos que éramos intocáveis. Ele, e o fato de sermos presos políticos, fez com que nos respeitassem e até admirassem. E o Velho Pierre… bem, ele era um caso especial, que estava vivendo numa situação muito ilógica. Barbas fugiu uns meses depois da nossa partida. “Conseguiu” o dinheiro necessário para pagar ao juiz que o deixou em liberdade a Pierre e a outros dois do nosso lado. Não tenho contato com eles, embora tenha sabido de suas loucas vidas.
Capítulo XXI, segunda parte: “Umas horas depois, quando vi o terno e inocente rostinho da mina filha, entendi o que havia presenciado”. O que havia presenciado era um estupro em cadeia a um estuprador de crianças. Como se deve entender aquí a palabra “entender”?
A lei universal da prisão é “veja, ouça e cale”. A outra lei não escrita é que todo estuprador de crianças deve ser estuprado e/ou assassinado. E regularmente os guardas facilitam essa espécie de “vingança social”. Eu, depois de haver presenciado o estupro do estuprador, tive a visita de minha filhinha de ano e meio. Vendo seu rosto inocente e sua falta de defesa, entendi a ira dos presos: eles estão encerrados, sem poder proteger a seus filhos ou familiares. Se abusar de uma mulher adulta já é gravíssimo…
O que sentiste quando abandonaram a prisão e alguém lhes gritou: “Guerrilheiros, não nos esqueçam” Esquecerão deles? Viverá neles o esquecimento de vocês?
Primeiro, eles nos davam um título, o de guerrilheiros, que não merecíamos, embora já estivéssemos acostumados a ser tratados assim. Essa frase e outras demonstrações de carinho nos fizeram chorar. Deixávamos aí uns seres que nos ensinaram diretamente que muitos discursos da esquerda são isso: discursos e boas intenções. Em três meses aprendi o que a leitura de grandes tratados e os discursos de certos dirigentes sobre a marginalidade, a “escória da sociedade”, a “miséria humana”, os pobres e sua pobreza são um tanto vazios.
Imagino que continuas gostando tanto da salsa (música)?
Encanto-me. É parte da minha energia diária. Ainda conservo as fitas e discos que comprei em Quito e que levei para a prisão. Os mesmos que foram a Lima e se multiplicaram. Essa mesma música que ocupou a maior parte das minhas malas ao chegar à França. O dançar diminuiu consideravelmente, e não precisamente pela idade, pois as pernas seguem com agilidade. Para certos personagens desgostosos dos escritos denunciativos, brigas e discussões simplórias podem mascarar graves acidentes. Porém a salsa, a verdadeira, é vida, é energia, cheira a tambores, a povo e otimismo.
(Lopes Arnal é profesor, jornalista e editor. Entrevista publicada na revista El Viejo Topo, Barcelona, 2013. www.elviejotopo.com)
Tradução: Victor José Caglioni